terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Sugestão de Leitura: Tratado do Petisco. Os grandes sabores portugueses numa conversa de boca cheia

Virgílio Nogueiro Gomes tem percorrido Portugal de lés a lés, sentado à mesa, de vigia na cozinha e em longas conversas entre garfadas. O resultado é um livro que encontra na história o condimento ideal. O gastrónomo trouxe sabores, cheiros e memórias no livro “O Tratado do Petisco” 

No século xix falar de caldeiradas em Vila do Conde era o mesmo que falar de impostos. Foi uma obrigação que as freiras do Mosteiro de Santa Clara daquela cidade impuseram aos pescadores para poderem aumentar os rendimentos. A imposição só terminou no século xix, depois de vários apelos dos pescadores ao rei. Caldeirada também é, claro, uma iguaria bem tradicional que nasceu da necessidade de aproveitar os peixes menos nobres na mesma panela, uma espera que se fazia à caldeira - daí o nome. "Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional" é o espaço onde a cozinha se encontra com a história e a tradição de um país. Virgílio Nogueiro Gomes é o guia do passeio tentador dos pastéis de bacalhau ao cozido à portuguesa passando pelos famosos pastéis de nata. 

Fazer um "panorama do país alimentar" era o principal objectivo do autor, que conta com muita experiência no currículo: "O tratado não surgiu de repente. É o acumular de anos em que faço investigação, recolho histórias, até que depois componho os textos. Alguns deles já tinham sido publicados no meu site." No site online fala-se de comida e fazem--se relatos reais dos pratos e das pessoas que os confeccionam. As viagens constituem um ponto de partida essencial para conhecer o trabalho. "Contactar com as pessoas, ter uma ligação directa com a técnica culinária e com o processo de se fazer o receituário é importante. Sempre que cito um local é porque fui a essa terra, fotografei, vi a receita e as pessoas a comerem." 

Os tremoços, as amêijoas à Bulhão Pato ou até o pão inauguram o texto. Há uma razão para os petiscos terem especial relevo na apresentação do livro. "Portugal é um país petisqueiro. Tanto melhoramos um petisco e o transformamos num prato principal como fazemos o inverso e reduzimos um grande prato a petiscos", conta Virgílio, que confessa que as amêijoas são a sua predilecção. Mas também gosta de peixinhos da horta. E de moelas de galinha. Na verdade, tem todo o gosto de experimentar tudo, sem preconceitos. O à-vontade com a comida está ligado às raízes transmontanas. 

"Fui educado em casas onde se comia bem e havia a tradição da mesa. Fui habituado desde criança a comer tudo, era proibido dizer que não se gostava. Experimentei de tudo e feliz da vida." Se aos oito anos só "depenicava", não tardou muito que ganhasse o verdadeiro gosto pelos pratos. Aos 12 já cozinhava, um interesse que evoluiu para lá dos sabores e das texturas. Para Vergílio tornou-se cada vez mais importante conhecer a história que estava para lá dos condimentos, da fervura indicada ou da temperatura ideal. "Saber as histórias das receitas é entender a maneira como as pessoas vivem, é um bocadinho misturar antropologia com sociologia e com a verdadeira história das pessoas."

A QUESTÃO DA FUSÃO A história dos produtos típicos cruza-se com as impressões do autor e estas articulam-se com receitas do mesmo ou de outros bons colegas de profissão. Regressamos ao século xvi para vestígios da criação do pastel de nata, ainda com as tigeladas de leite. Chegamos ao século xix, à produção do doce que nasceu no Convento de Odivelas e não no Mosteiro dos Jerónimos, como se costuma anunciar. Virgílio fala-nos da alheira, que os lisboetas tratam mal. O transmontano a viver em Lisboa defende que a alheira frita com batatas fritas e ovo estrelado é uma bomba calórica que, além de prejudicial à saúde não realça o sabor do produto. Já a tradição nortenha indica uma cozedura no forno ou na brasa, deixando escorrer a gordura e fazendo acompanhar a alheira do contraste com a acidez dos grelos. O autor fala-nos ainda da importância das sopas, que podem fazer uma refeição - e ensina-lhe como. Recorda a carne do cabrito de leite, a oportunidade ideal para trazer um novo sabor à mesa de Natal. 

Todas as grandes receitas portuguesas marcam lugar no "Tratado do Petisco", mas isso não é sinónimo de conservadorismo. As chamadas operações de fusão, que trazem novidades a receitas com história, só têm relevância se se integrarem na tradição e se mantiverem no tempo. Se Virgílio torce o nariz a uma alheira de bacalhau, que "descaracteriza" o produto, mostra o quindim como exemplo de uma iguaria brasileira que entrou no receituário português. Mudanças que são necessárias e mais que bem-vindas. Oportunidade para uma conclusão sobre os sabores da terra: "Voltemos às receitas das nossas avós. Elas é que tinham razão. Temos é de aprender a melhorá-las." 


Fonte: ionline

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