Virgílio
Nogueiro Gomes tem percorrido Portugal de lés a lés, sentado à mesa, de
vigia na cozinha e em longas conversas entre garfadas. O resultado é um
livro que encontra na história o condimento ideal. O gastrónomo trouxe
sabores, cheiros e memórias no livro “O Tratado do Petisco”
No século xix falar de
caldeiradas em Vila do Conde era o mesmo que falar de impostos. Foi uma
obrigação que as freiras do Mosteiro de Santa Clara daquela cidade
impuseram aos pescadores para poderem aumentar os rendimentos. A
imposição só terminou no século xix,
depois de vários apelos dos pescadores ao rei. Caldeirada também é,
claro, uma iguaria bem tradicional que nasceu da necessidade de
aproveitar os peixes menos nobres na mesma panela, uma espera que se
fazia à caldeira - daí o nome. "Tratado do Petisco e das Grandes
Maravilhas da Cozinha Nacional" é o espaço onde a cozinha se encontra
com a história e a tradição de um país. Virgílio Nogueiro Gomes é o guia
do passeio tentador dos pastéis de bacalhau ao cozido à portuguesa
passando pelos famosos pastéis de nata.
Fazer um "panorama do país alimentar" era o principal objectivo do
autor, que conta com muita experiência no currículo: "O tratado não
surgiu de repente. É o acumular de anos em que faço investigação,
recolho histórias, até que depois componho os textos. Alguns deles já
tinham sido publicados no meu site." No site online fala-se de comida e
fazem--se relatos reais dos pratos e das pessoas que os confeccionam. As
viagens constituem um ponto de partida essencial para conhecer o
trabalho. "Contactar com as pessoas, ter uma ligação directa com a
técnica culinária e com o processo de se fazer o receituário é
importante. Sempre que cito um local é porque fui a essa terra,
fotografei, vi a receita e as pessoas a comerem."
Os tremoços, as amêijoas à Bulhão Pato ou até o pão inauguram o
texto. Há uma razão para os petiscos terem especial relevo na
apresentação do livro. "Portugal é um país petisqueiro. Tanto melhoramos
um petisco e o transformamos num prato principal como fazemos o inverso
e reduzimos um grande prato a petiscos", conta Virgílio, que confessa
que as amêijoas são a sua predilecção. Mas também gosta de peixinhos da
horta. E de moelas de galinha. Na verdade, tem todo o gosto de
experimentar tudo, sem preconceitos. O à-vontade com a comida está
ligado às raízes transmontanas.
"Fui educado em casas onde se comia bem e
havia a tradição da mesa. Fui habituado desde criança a comer tudo, era
proibido dizer que não se gostava. Experimentei de tudo e feliz da
vida." Se aos oito anos só "depenicava", não tardou muito que ganhasse o
verdadeiro gosto pelos pratos. Aos 12 já cozinhava, um interesse que
evoluiu para lá dos sabores e das texturas. Para Vergílio tornou-se cada
vez mais importante conhecer a história que estava para lá dos
condimentos, da fervura indicada ou da temperatura ideal. "Saber as
histórias das receitas é entender a maneira como as pessoas vivem, é um
bocadinho misturar antropologia com sociologia e com a verdadeira
história das pessoas."
A QUESTÃO DA FUSÃO
A história dos produtos típicos cruza-se com as impressões do autor e
estas articulam-se com receitas do mesmo ou de outros bons colegas de
profissão. Regressamos ao século xvi para vestígios da criação do pastel de nata, ainda com as tigeladas de leite. Chegamos ao século xix,
à produção do doce que nasceu no Convento de Odivelas e não no Mosteiro
dos Jerónimos, como se costuma anunciar. Virgílio fala-nos da alheira,
que os lisboetas tratam mal. O transmontano a viver em Lisboa defende
que a alheira frita com batatas fritas e ovo estrelado é uma bomba
calórica que, além de prejudicial à saúde não realça o sabor do produto.
Já a tradição nortenha indica uma cozedura no forno ou na brasa,
deixando escorrer a gordura e fazendo acompanhar a alheira do contraste
com a acidez dos grelos. O autor fala-nos ainda da importância das
sopas, que podem fazer uma refeição - e ensina-lhe como. Recorda a carne
do cabrito de leite, a oportunidade ideal para trazer um novo sabor à
mesa de Natal.
Todas as grandes receitas portuguesas marcam lugar no "Tratado do
Petisco", mas isso não é sinónimo de conservadorismo. As chamadas
operações de fusão, que trazem novidades a receitas com história, só têm
relevância se se integrarem na tradição e se mantiverem no tempo. Se
Virgílio torce o nariz a uma alheira de bacalhau, que "descaracteriza" o
produto, mostra o quindim como exemplo de uma iguaria brasileira que
entrou no receituário português. Mudanças que são necessárias e mais que
bem-vindas. Oportunidade para uma conclusão sobre os sabores da terra:
"Voltemos às receitas das nossas avós. Elas é que tinham razão. Temos é
de aprender a melhorá-las."
Fonte: ionline
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