Maria do Céu Saraiva, queijeira, quase na brincadeira, respondeu ao
desafio de um companheiro de jorna e foi mostrar à Casa da Ínsua que
sabia fazer queijo da serra da Estrela. Hoje tem selo DOP.
"Olhe que num noto!" Mas tem. Maria do Céu tem de facto as mãos
frias, dentro da possibilidade de ter as mãos frias numa tórrida tarde
de Julho em Penalva do Castelo. Tem-nas seguramente mais frias do que as
nossas, lavadas de calor. É por estar calor que Maria do Céu está com a
mão noutra massa que não aquela que lhe pede pouco sangue nos dedos.
Apanhámo-la a apanhar cardos, ou melhor, a arrumar em caixas abertas as
longilíneas pétalas roxas que lhe vão coalhar a obra. É de queijo que
falamos, com selo DOP da serra da Estrela.
O passado de Maria do
Céu Saraiva tem 53 anos, três cancros, duas filhas, um divórcio e pais
da lavoura. É do tempo deles que data o uso que deu às mãos frias. Não
porque o fossem, mas porque a mãe queijeira da Quintela da Azurara, na
Mangualde da outra banda do vale, adoeceu.
"Tinha alguns 14 anos" e
a quarta classe, quando fez o primeiro queijo sozinha, a olho e com os
utensílios que "estão para lá" na casa dos pais e que, promete, há de ir
desenterrar. Porque o queijo que lhe sai dos dedos, hoje, não é nada
que tenha que ver com o queijo feito a olho, cozido em banho-maria,
coberto com uma manta velha, curado onde calhava, num fundo da cozinha
que era "daquelas fundas".
Hoje, tem o fantasma da ASAE e uma
balança para medir escrupulosamente o sal, o cardo, o leite. Seis litros
por quilo de queijo, feito numa francela assética, um metálico
retângulo inclinado em vez da redonda madeira da mãe, e enrolada noutro
inócuo acincho, tudo manuseado por detrás de vidros. Maria do Céu está
como numa montra, na silenciosa queijaria da Casa da Ínsua.
Penalva
entrou-lhe na vida aos 18 ou 19 anos, em dote com a aliança que mais
tarde rejeitou. E tirou-lhe o queijo, a princípio, que os cafés de que
foi tomando conta desviaram-lhe a rota. A necessidade trouxe a queijeira
até à Ínsua ainda nem a casa era o que hoje é. Vindimou, conheceu gente
como ela, na jorna, e seguiu vida. Até que a terra dos Albuquerque
passou a hotel de charme com a quinta revigorada. "Disse-me um rapaz que
trabalhava aqui, 'ó velhota, tem que vir trabalhar para a Casa da
Ínsua', mas eu só se fosse para fazer queijo..."
A primeira roda
calhou-lhe bem e ficou, desde aí, a emprestar a frieza manual a uma das
14 marcas certificadas de queijo serra da Estrela e a ensinar os
curiosos que queiram tentar e, na maioria dos casos, arruinar a
possibilidade de um bom amanteigado. Porque é nisso que a as mãos frias
que não sente fazem a diferença. Como um forno muito quente esturrica um
assado mal cozido, o calor transforma um DOP num simples queijo de
ovelha curado. Explica ela, que até tem fígado traiçoeiro e nem pode
sonhar provar o que faz.
Fonte: Jornal de Notícias
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