Tudo começou em meados do século
passado, quando, com grande surpresa, os norte-americanos chegaram à
conclusão de que os pobres e mal nutridos povos do Sul da Europa eram,
afinal, mais saudáveis e imunes a doenças do que os cidadãos das
chamadas "sociedades de bem-estar". O segredo? Uma dieta à base de
alimentos sazonais e ricos em fibras, como pão, frutas e legumes,
reduzidas quantidades de carnes vermelhas, e o azeite como principal
gordura.
Houve quem logo a identificasse como a
dieta dos pobres. Não exclusivamente da bacia mediterrânica, mas aí
centrada, e que por uma questão de metodologia de estudo e simplificação
linguística acabou por ficar mundialmente conhecida e famosa como dieta
mediterrânica, que na quarta-feira foi classificada pela UNESCO como
Património Imaterial da Humanidade. O responsável foi um médico e
investigador americano, Ancel Keys, que com a sua equipa percorreu os
países do Mediterrâneo. Estudou e caracterizou o seu estilo de
alimentação, concluindo que era responsável pela menor prevalência de
doenças e maior longevidade das suas populações, quando comparado com os
hábitos alimentares dos EUA e da generalidade dos países então mais
desenvolvidos.
Conta-se que Portugal foi também
incluído nas suas observações e estudos, e aqui teria mesmo encontrado a
dieta que considerava mais pura, mas Salazar tê-lo-á dissuadido de
incluir o nosso país nas suas conclusões. O ditador não quereria ver o
nome de Portugal inscrito na lista da dieta dos pobres!
O episódio vale pela constatação de que o
conceito de dieta mediterrânica não se circunscreve apenas às costas do
mare nostrum, mas antes designa um estilo de alimentação baseado no
consumo de azeite, pão, produtos de temporada, como frutas e legumes
frescos, peixes e carnes em quantidades moderadas, e pastas à base de
sêmola. E nem sempre todos estes produtos necessitam de estar presentes.
As quantidades e associações variam de região para região e também com
as épocas do ano
Ao conceito junta-se ainda um profundo
respeito pelo tempo: de colheita, de cozedura ou trabalho culinário; e
ainda para as refeições, ou seja, um ritmo de trabalho e consumo que
caracterizam também um específico modo de vida e de relacionamento
social, que são parte integrante e indissociável de todo o processo.
José Avillez, um dos mais reconhecidos e
talentosos cozinheiros portugueses, chama a atenção para a diferença
entre os conceitos de cozinha e dieta, concluindo que não existe uma
cozinha mediterrânica. “O que há é um conceito de dieta muito alargado –
e não fundamentalista – a partir da evolução do homem primitivo. A base
é o azeite, o pão e o vinho, ou seja, a transformação dos cereais,
azeitonas e uvas para conservação e consumo ao longo do ano – ao que
juntaram depois os legumes.”
Também José Bento dos Santos,
conceituado gastrónomo e presidente da Academia Portuguesa de
Gastronomia, salienta que a designação não é um conceito fechado: “O
nome foi inventado por um americano [Ancel Keys], que podia muito bem
ter-lhe chamado dieta da boa vida ou outra coisa qualquer.” A base,
frisa, “é a utilização do azeite, a gordura que era a dieta dos pobres”.
E é a este propósito que fala da relutância de Salazar. A história,
disse ao Público, foi-lhe contada por Maria de Lurdes Modesto, com quem o
especialista americano conversou durante as visitas a Portugal e que
lhe terá confidenciado o episódio.
Do mar à horta
Depois da fama e notoriedade mundial que a dieta mediterrânica alcançou na sequência das conclusões de Keys, muitos outros estudos se têm desenvolvido, designadamente aqueles que apontam para a prevalência dos efeitos benéficos de uma dieta atlântica. As bases em pouco diferem, acentuando-se apenas o papel do consumo dos peixes, mariscos e legumes frescos. Do mar e da horta, como é típico da nossa costa.
“Somos o país do bacalhau, do qual fomos
à procura pelos mares do Norte pela necessidade de peixe”, observa
Virgílio Gomes, para quem “dizer que temos uma cozinha mediterrânica é
uma falácia”. “Mesmo no Alentejo, onde se organizam congressos e
festivais sobre dieta mediterrânica, é hoje pouco praticada com os
guisados, puxados e enchidos condimentados”, adianta o professor e
investigador em história da alimentação e gastronomia. No nosso caso,
conclui, “faz mais sentido falarmos em dieta atlântica”.
No mesmo sentido vai André Magalhães,
que confessa ter “dificuldade em defender que temos uma dieta
mediterrânica". Para este cozinheiro e docente (no Mestrado em Ciências
Gastronómicas que é ministrado pelo Instituto Superior de Agronomia e
pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa)
“é precipitado querer como país juntarmo-nos à dieta do Mediterrâneo”,
opina. “Historicamente só Trás-os-Montes é que tinha azeite, nas outras
regiões eram as gorduras animais, e mesmo no pão a nossa tradição foi
sempre a de farinhas de mistura. A cultura do trigo é recente e resulta
da industrialização da panificação”, expõe, para dizer que “nos marca
muito mais a influência mourisca que a cultura do mare nostrum do
Mediterrâneo, que vem do tempo dos fenícios e não incluía aquele que é o
nosso território”. E conclui: “Se queremos uma imagem, seria muito mais
interessante a ideia de dieta atlântica, que melhor nos identifica e
nos colocaria nos países da linha da frente. A começar pelo consumo de
peixes e mariscos frescos.”
Radicalmente diferente é a posição de
Bento do Santos. “A dieta atlântica não existe. Isso é uma falácia”,
avisa aquele que, como líder do programa Prove Portugal, é até o
responsável pela ideia de divulgar a nossa gastronomia como tendo “o
melhor peixe do mundo”.
Numa coisa, no entanto, todos parecem
estar plenamente de acordo. A classificação é muito importante para
promover o país e a nossa gastronomia. “Tem impacto em todo o mundo
estarmos associados a isto”, discorre Bento do Santos, enquanto José
Avillez entende que “pode promover uma cozinha saudável e de qualidade”,
mas sem a tentação de nos metermos “no mesmo barco de países como a
Itália ou a Grécia”. “O mais importante é não destruirmos a nossa
identidade”, avisa.
Também Virgílio Gomes entende que a
classificação “pode promover uma cozinha mais autêntica” e que pode ser
boa para os agricultores. “Promove o consumo de legumes e até das frutas
feias”, diz, para ridicularizar a obsessão pela fruta calibrada que é
prática das grandes superfícies.
Fonte: Publico / Anilact
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