Deixaram para trás os diplomas que tinham e voltaram-se para a cozinha, em busca de melhores oportunidades de emprego. Viram nas Escolas de Hotelaria e Turismo a hipótese de uma nova vida.
O que liga Pedro Braumann, Ana Rita Ribeiro e Liliana (“Lee”)
Guimarães não é apenas a cozinha, mas o que os levou até ela. O
engenheiro florestal, a bióloga e a jornalista, respectivamente,
deixaram as áreas que estudaram na faculdade quando se aproximavam dos
30 anos e voltaram à escola. Olham para a cozinha como a melhor
oportunidade que já tiveram de fazer algo gratificante, pessoal e
profissionalmente.
A ideia que Pedro, Ana Rita e Lee partilham é que os cursos das Escolas de Hotelaria e Turismo (EHT)
têm uma empregabilidade “bastante alta”. “A procura que há hoje em dia
para os cursos de cozinha é exponencialmente aumentada e insuflada pela
enxurrada mediática que existe”, considera Lee, numa alusão aos vários
programas televisivos sobre gastronomia. Se se deixou levar por isso? “O
difícil é negar”, confessa. É que de acordo com dados das EHT, citados
pela Agência Lusa, mais de metade (51,6 por cento) dos alunos têm
emprego e, destes, 77,3 por cento conseguiram trabalho nos primeiros
três meses após a formação — ainda que a maioria receba entre 486 e 750
euros. Daí que seja uma área atractiva para quem passa meses à procura
de emprego na área de estudo.
“Quando o governo se demitiu, em 2011, percebi que era a minha deixa.
Demiti-me também e decidi ir embora”, começa Lee Guimarães, 30 anos,
fotografada numa das cozinhas da EHT do Porto.
Depois de quase cinco anos a trabalhar num jornal local, a jovem de São
João da Madeira sentia-se com claustrofobia, “sem hipótese de
progressão”. Começou por ir trabalhar para a Córsega como empregada de
limpeza numa agência imobiliária — “por isto se vê que estava numa fase
em que aceitava qualquer coisa”. A mudança concretizou-se no início de
2013, quando a segunda candidatura ao curso de Gestão e Produção de
Cozinha da EHT do Porto teve sucesso.
Lee voltou à escola, vários anos depois de se ter licenciado, com a
perspectiva de “pelo menos, ganhar mais do que ganhava antes” — “e a
fazer uma coisa igualmente prazenteira”. No último ano, admite ter
deixado a vida social em pausa. Estudar para trabalhar numa cozinha é,
diz, “comprar um saco e batatas, chegar a casa e passar a noite a
cortá-las, com a ajuda de uma régua, por exemplo”.
Trocar receitas por protocolos
Uma licenciatura em biologia e um doutoramento em aquacultura e
nutrição depois, Ana Rita Ribeiro percebeu que “a ideia de continuar a
vida toda em bolsas não era algo atraente”. “Não queria ciência por
ciência, gostava mais de trabalhar na indústria”, conta ao P3 a jovem de
31 anos. No fim do doutoramento e sem perspectivas de emprego na área, a
ideia de trabalhar em cozinha começou a parecer-lhe cada vez melhor.
“Tenho 28 anos. Incerteza por incerteza, se não mudar agora vou mudar
quando?”, pensou na altura. Dedicou-se a um curso técnico de restauração
e bebidas na EHT do Porto (“mais sala e serviço do que cozinha”) e, no
fim, regressou à Noruega, onde tinha desenvolvido investigação durante
quatro anos do doutoramento.
Naquele país, Ana Rita não conseguiu trabalho em biologia, antes
experiência a “servir em banquetes e cantinas” e também como ajudante de
cozinha. Alguns meses depois, decidiu “não ficar mais na corda bamba” e
voltou para Portugal. Inscreveu-se no curso de Culinary Art na EHT de Lisboa
e, em Setembro de 2013, regressou às salas de aula. “Quando investes
muito numa coisa e acabas por fazer um doutoramento, tens que gerir não
só as tuas expectativas de vida mas também as das outras pessoas”,
reflecte. Talvez por isso não tenha o hábito de dizer a toda a gente que
tem um doutoramento. “Não acho que me defina como pessoa, ainda que
faça parte de mim, do meu currículo e da minha vivência.”
A biologia e a cozinha não são tão diferentes quanto possamos pensar.
“A cozinha funciona muito como um laboratório (...) Agora sigo
receitas, antes seguia protocolos”, compara. “A única diferença é que
quando sigo um protocolo científico não há espaço para espontaneidade — e
na cozinha tens de ter isso.”
A espontaneidade e, também, a possibilidade de se ser muito criativo é o que mais atrai Pedro Braumann,
um engenheiro florestal de Braga que terminou o curso como melhor
aluno, em Vila Real. Passou dois anos a fazer investigação na área mas,
“por mais coisas que fizesse”, nunca se sentia saciado. Até que percebeu
que podia estudar para ser cozinheiro: “Na altura, pensava que era
preciso ter uma cunha para entrar num restaurante”. Com 29 anos,
ingressou na EHT de Coimbra.
“Estranhei porque deixei de ter um ordenado ao fim do mês, voltei a
comer nas cantinas da universidade, cortei nas saídas à noite. Tudo
muda, há uma gestão importante de prioridades.”
Aos 31 anos, depois de já ter passado por vários restaurantes — ainda
que temporariamente — na Escócia, em Londres e em Coimbra, Pedro sabe
que prefere o “campeonato da alta cozinha”, no qual gostava de fazer
carreira. Há uma semana no Dubai (a partir de onde conversou com o P3,
via Skype), onde está a trabalhar como chef de partida no
restaurante-bar de uma conhecida cadeia de hotéis, Pedro admite ter
descoberto muita coisa de si que, ao trabalhar como engenheiro
florestal, estava adormecida. “Sou muito mais pró-activo, até além da
profissão, e muito mais feliz.”
“Não há nada de glamoroso numa cozinha”
Pedro, que já trabalhou em restaurantes de topo (só em Londres foram
quatro — estrelas Michelin incluídas), não tem pudor em dizer que quando
se diz que uma cozinha pode ser “um inferno”, não se está longe da
verdade. “Estamos sempre expostos a situações de risco, facas, fogo. É
preciso muita atenção e estarmos cem por cento concentrados, física e
mentalmente”, diz. “Socos, chapadas e insultos verbais” são algumas das
“coisas más” a que já assistiu. “Não há nada de 'glamour' quando
trabalhas numa cozinha: é duro, sujas bastante, é quente e passas muitas
horas de pé, muitas vezes sem comer e até sem ir à casa de banho”,
descreve Ana Rita.
Mas quer Pedro — que se assume como “um bocadinho ambicioso” — quer
Ana Rita e Lee dizem estar preparados. “Não me assustam as loucas horas,
até porque quando trabalhava em biologia também não tinha feriados nem
fins-de-semana”, recorda Ana Rita. Já Lee, para quem mudar de vida era
um imperativo, tem a consciência de que a cozinha é uma área na qual,
recebendo o treino certo, consegue “fazer bem e ser muito boa”.
Fonte: P3 Publico
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