Isabel
Soares criou uma cooperativa que se dedica a recolher os alimentos que
os agricultores não conseguem vender nos mercados e nas grandes
superfícies por não corresponderem aos padrões. Até agora a Fruta Feia
evitou o desperdício de 4,2 toneladas de alimentos
As pequenas caixas de madeira vão-se enfileirando no chão, ao longo
do grande salão da Casa Independente, no Largo do Intendente em Lisboa,
que à noite se enche com gente que quer beber um copo e ouvir música.
Ali, entre o grande espelho pregado à parede, o candelabro, a bola de
espelhos e o palco com um gigante leopardo pintado, a fruta feia e os
legumes com excesso de peso - como a courgette com o dobro do tamanho
que não cabe nas cuvetes de transporte, ou a couve-coração que parece
ter tido um desgosto amoroso e ficaria para último na prateleira -
vão-se acumulando nas caixas. Aquilo que iria para o lixo é agora
convertido em alimento.
É já perto das três horas da tarde quando Isabel Soares vai buscar a
balança, pronta para começar a pesar e a distribuir pelas ditas caixas
os alimentos recolhidos na mesma manhã. A couve-coração, as courgettes,
as cebolas, as maçãs, o feijão-verde, os brócolos, as laranjas e as
physalis, ou, melhor dizendo, um colorido de vegetais saudáveis que são
recusados pelas grandes superfícies. Estes alimentos não são
comercializados porque não têm o tamanho padronizado, ou, como dizem,
"têm o calibre fora do standard", ou ainda porque nasceram deformados.
Há cerca de seis semanas que todas as segundas-feiras a cooperativa
Fruta Feia repete este ritual, num combate ao desperdício alimentar. Mas
para percebermos como tudo isto se processa vamos recuar a Novembro de
2013.
estética
Tudo
começou há sete anos, quando Isabel vivia em Barcelona, onde trabalhava
como engenheira do ambiente. "Comecei a ver muitos documentários que
falavam sobre a questão do desperdício alimentar e indignava-me muito.
Pensei que tinha de fazer alguma coisa a respeito do assunto."
Depois,
em conversa com um tio agricultor, Isabel percebeu que isso do
desperdício não era só coisa de documentário. "O meu tio é produtor de
pêra e contou-me que, por exemplo, de toda a pêra que tinha naquele
momento, 40% ia ficar na árvore por não obedecer ao calibre requerido."
Tudo isto coincidiu ainda com a altura em que Isabel descobriu um
concurso promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian na área do
empreendedorismo social - "Ideias de Origem Portuguesa"
(ideiasdeorigemportuguesa.org). Muitos estudos e prospecções de mercado
depois - um trabalho feito entre Janeiro e Julho de 2013 -, Isabel
deixava Barcelona e voltava a Lisboa para criar o projecto Fruta Feia,
que ganhou o segundo prémio do referido concurso, ou seja, uma bolsa de
15 mil euros. Além do prémio, o projecto esteve em crowdfounding durante
dois meses, tendo conseguido cerca de 5 mil euros.
A ideia central da Fruta Feia é "resolver algo que não está bem na
sociedade", diz a sua criadora. Assim, o que a cooperativa faz é
estabelecer uma ponte directa entre agricultores e consumidores.
Trocando por miúdos, fazer chegar os produtos agrícolas que os
produtores não conseguem vender às grandes superfícies aos clientes,
evitando que sejam deitados ao lixo. Em seis semanas de funcionamento, a
Fruta Feia já evitou o desperdício de 4,2 toneladas de alimentos.
Mas
afinal como é que tudo se processa?
oeste
A
recolha feita pela Fruta Feia é um trabalho de formiguinha. Todas as
segundas-feiras por volta das oito horas, Isabel, acompanhada pela
catalã Anna Ollé e pelo italiano Andrea Battochi, faz--se à estrada em
direcção à Região Oeste, onde a cooperativa tem uma rede de 19
agricultores. Cada semana são visitados alguns destes agricultores, que
vendem à Fruta Feia precisamente aquilo que seria para deitar fora. "Em
Portugal ainda se pensa que quanto maior melhor. Mas na verdade quanto
maior for, por exemplo, a fruta, mais células dilatadas tem e portanto
menos sabor", explica-nos o Sr. Clímaco na primeira cooperativa
visitada. Aqui foram buscar maçã.
Todas as semanas os produtos recolhidos vêm de diferentes
agricultores, para não repetir a receita da semana anterior. Claro que,
como se trata de aproveitar o que não é vendido pelos agricultores, às
vezes os grelos que se encomendam podem tornar-se brócolos, como
aconteceu com a recolha feita na produção de D. Isabel, em Gentias.
"Tínhamos pedido grelos, mas como a Isabel os vendeu todos já não tinha.
Então, em compensação, levamos brócolos", explica Isabel.
À medida que vai fazendo as recolhas do dia, que nesta segunda-feira
incluíram ainda dois agricultores em Cambaia e no Sobreiro, a Fruta Feia
paga a sua despesa. "Normalmente as grandes superfícies pagam aos
agricultores a 90 dias. Nós pagamos na hora", explica a engenheira
alimentar enquanto acerta contas com D. Isabel. A Fruta Feia negoceia
sempre o preço com os agricultores, e, ainda que os vegetais e as frutas
fora do padrão se vendam mais baratos que os ditos normais, a
cooperativa faz questão de que o preço a pagar cubra sempre os custos de
produção, uma prática pouco comum. A título de exemplo, contam- -nos
que a Compal compra a laranja a 1 cêntimo o quilo. "Muitas vezes os
agricultores vendem a esses preços só mesmo para não deixarem a fruta
apodrecer nas árvores. Mas a nossa ideia é também ajudá-los", explica
Isabel. Com a carrinha da Fruta Feia quase cheia, está na hora de voltar
a Lisboa, para completar o ciclo da luta contra o desperdício
alimentar.
aqui não há clientes
Quando
pensou neste projecto, Isabel teve de equacionar qual seria a melhor
formar de dar um destino aos alimentos recolhidos. Uma loja estaria fora
de questão, pois não se poderia garantir que tudo fosse escoado, e isso
"seria trabalharmos contra a nossa própria causa", explica. Então
procurou um sítio que lhe cedesse espaço para, uma vez por semana,
receber os sócios da Fruta Feia. E encontrou guarida na Casa
Independente, em Lisboa. No fundo, tudo funciona como uma cooperativa
normal. Há uma rede de sócios, que se inscrevem para receber os cabazes
que todas as semanas a Fruta Feia elabora com os produtos recolhidos. Há
dois tipos de cabazes: o de 5 a 7 quilos, que custa 3,5€, e o de 7 a 9
quilos, que custa 7€. Neste momento já são 150 sócios e, com preços tão
apelativos, não é de estranhar que tenham mais de 220 em lista de
espera. "Para já ainda não temos capacidade logística para responder à
procura que tem tido", explica. Ter um sistema de sócios é ainda a
melhor forma de garantir que tudo o que recolhem vai ser consumido.
Quanto ao consumidor-tipo desta iniciativa, a diversidade não é pouca.
"Aqui há de tudo, de jovens a velhinhos que todas as semanas vêm buscar o
seu cabaz. Numa cidade como Lisboa não pensei que tantas pessoas se
comprometessem com o projecto, mas está a acontecer." Se não morar na
capital, nada tema, porque Isabel Soares pensa alargar a Fruta Feia a
outros bairros da cidade e criar uma rede por todo o país.
Fonte: ionline.pt
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